Fotobiografia de um mestre<br>Óscar Lopes – Retrato de Rosto, de Manuela Espírito Santos
Não sei, meu caro Óscar Lopes, a esta distância do seu silêncio, se o que conta é debruar-lhe, usando os fios das palavras mais nobres, o elogio (sempre amputado, sempre aquém do seu génio), do notável professor que foi, do exigente pedagogo, do linguista exímio e perscrutador das vibrações mais íntimas das palavras, do ensaísta arguto, do crítico sagaz e, só aparentemente, austero. Tudo isso, a juntar aos anos de repressão tacanha e ignóbil a que os verdugos e o obscurantismo fascista o condenou, amputando uma boa parte do País à sua lúcida capacidade de nos ler, de nos orientar por entre o chão poroso, no clarão das palavras enxutas, impedindo que a sua vasta cultura nos servisse de esteio mais amplo, profícuo e atempado para o entendimento deste nosso tempo.
Manuela Espírito Santo tece neste Retrato de Rosto, que é um prodígio de estudo, busca, recolha e interpretação lúcida do seu percurso de vida, desde as origens até aos dias do fim, passando pelos amigos, a obra, os afectos, as cumplicidades, os tempos infectos da vergonha, a militância no seu Partido de sempre, os esconjuros dos esbirros do medo, a Festa de Abril e a libertação dos presos políticos, o retorno, em 1975, à Universidade do Porto, como Professor Catedrático da Faculdade de Letras, a publicação, corrigida e aumentada, da 8.ª edição da História da Literatura Portuguesa, (já conto 18 edições), acervo do melhor que as palavras, em português, nos legaram deste o século primeiro da nossa identidade até aos contemporâneos que o seu labor nos ajudou a amar; a sua eleição, em 1976, para o Comité Central do PCP, a família, os amigos, entre os quais se salientam Eugénio de Andrade, cuja obra admirava, o seu cunhado Jorge de Sena, Erico Veríssimo, Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro e tantos outros.
Tudo isto e muito mais, toda uma vida de trabalho, estudo e luta, está presente nesta Fotobiografia que traça, do autor de 5 Motivos de Meditação, não apenas o Retrato de Rosto, mas um amplo e fecundo retrato de corpo inteiro descrito com rigor histórico e crítico ao longo de quase 500 páginas, num belíssimo objecto gráfico, profusamente ilustradas com fotos que ponteiam e amplificam os sentidos das palavras claras, carregadas de memórias, de reconhecimento e de afectos, da autoria de Manuela Espírito Santo: Nunca me ofereceu camélias. Oferecia-me livros. Não tomámos chá nas tarde que passámos juntos. Dava-me o seu tempo, o bem mais precioso, e a sua infinita paciência de responder a perguntas que, dia após dia, lhe colocava. A delicadeza era o seu timbre: abria a porta e um sorriso, encaminhava-me para a sala do piano. Aí, conversávamos sem filtros: falou-me da vida, da morte, do amor de amores, de política, das políticas, da religião, de religiões. Tínhamos o tempo todo – julgava eu – e a conversa fluía entre duas pessoas de gerações distintas, convergentes, no essencial, na «aventura de viver».
«A vida parece-me como que um texto com sentido a decifrar», escreveria Óscar Lopes, o sentido que tentou decifrar, esse absurdo persecutório, quando a PIDE o levou para a sinistra cadeia da Rua do Heroísmo, pelo crime hediondo de pertencer à Comissão do Porto do Movimento da Paz. O Processo dos 52, diz-nos Manuela Espírito Santo, é um dos mais duros e violentos da história da repressão fascista. Envolve dezenas de advogados, centenas de testemunhas. O julgamento no Tribunal Plenário, iniciado em Dezembro de 1956, termina em 12 de Junho de 1957, com a absolvição de parte dos arguidos e penas de prisão para mais de duas dezenas. A pena mais gravosa é aplicada ao historiador António Borges Coelho: 2 anos e 9 meses de prisão efectiva e perda de direitos cívicos por 15 anos.
Óscar Lopes será, durante anos, um dos alvos preferidos da Polícia Política do salazarismo. Impedem-no de leccionar; de assinar os seus textos críticos com nome próprio, que este substitui pelo pseudónimo Luso do Carmo, prosseguindo a publicação da sua crítica literária nas páginas do Comércio do Porto; criam o cerco à sua actividade cívica e profissional, cerco que se estenderá aos seus amigos e companheiros de letras e de luta, quando estes tentam homenagear o Companheiro de Tantas Jornadas Difíceis. Mas a homenagem, apesar de indeferida, A Bem da Nação, pelo Secretário do Governo Civil, Dr. Januário Nunes, sairá num número do jornal A Opinião, totalmente dedicado a Óscar Lopes. Estava-se a 20 de Abril de 1974.
Nesse mesmo número do jornal, escreverá Ferreira de Castro: Grande homem num corpo pequeno, grande espírito num pequeno país, Óscar Lopes é uma das mais notáveis personalidades do nosso tempo.
Com este Óscar Lopes – retrato de rosto, de Manuela Espírito Santos, a Câmara Municipal de Matosinhos, que editou este monumento biobibliográfico, presta homenagem merecida a um dos seus mais ilustres filhos, ao senhor de Matosinhos, como lhe chamou Vasco Graça Moura, no ano em que se comemoram os 100 anos do seu nascimento. Senhor de Matosinhos e do mundo, alguém de voz já rouca que chegava tarde a casa e tinha ainda tempo e talento para nos deixar abertos sobre a mesa os prodígios das palavras altas num Álbum de Família.
Óscar Lopes – retrato de rosto, de Manuela Espírito Santo – Edição Câmara Municipal de Matosinhos/2017